Sinopse:
“Existe uma Lisboa paralela a cada obra nascida dentro da cidade. Uma Lisboa que respira nas tábuas de Nuno Gonçalves ou nas odes de Álvaro de Campos. Talvez a olissipografia tenha deixado essa Lisboa de lado, mas tem sido a presença permanente da cidade na escrita de alguns autores o principal remissivo utilizado pelas gerações seguintes: o topónimo aterro evoca-nos, inevitavelmente, Eça de Queiroz; assim como a Rua do Arsenal é Cesário ou a Almirante Reis é Rodrigo Miguéis. (...)
Esta primeira geografia pessoana é mais do que uma viagem através da cidade onde Fernando Pessoa nasceu, viveu e morreu. É, sobretudo, uma nova aventura a partir de textos conhecidos e uma nova forma de os ilustrar. Dos cenários quotidianos, dos hábitos e referências que fizeram uma época, nos dá conta a recolha iconográfica. Mas, guiada pelos próprios textos de Pessoa, esta viagem a Lisboa recorta cada fotografia num cenário de inquietação e de fingimento. E mesmo os prédios pombalinos que alinham escritórios semelhantes entre si (os escritórios onde trabalhou), ou as casas que foi alugando ao longo da vida (inevitavelmente longe do coração da Baixa), recolhem, hoje, pacificamente, à nossa memória das frases pessoanas. ‘Oh, Lisboa, meu lar!’.”
Marina Tavares Dias, na introdução ao livro
Lisboa de Fernando Pessoa.
*
“Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª, e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem.”
Bernardo Soares
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"Tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar
quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da
civilização e o alargamento da consciência da humanidade"
Fernando Pessoa
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JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Portugal é um país com vocação para o fado. Inevitável, dirão alguns: como é possível que um pequeno país europeu, dono do mundo no século 15, tenha sobrevivido à perda do Império com a cabeça limpa?
Resposta evidente: não sobreviveu. O Brasil, verdade seja dita, ainda animou as hostes a partir do século 16. Mas, quando Napoleão resolveu marchar para a Península Ibérica, o agudo sentido de decadência nunca mais abandonou os nativos.
Em 1807, o rei fazia as malas e fugia para o Brasil; o Brasil, poucos anos depois, declarava a independência; e as guerras civis em solo luso fizeram o resto. Ser português era sofrer: era lembrar a glória perdida e suspirar de tédio ou náusea. De Eça de Queirós a Oliveira Martins, não houve intelectual com pretensões que não tenha escrito sobre o “atraso” nacional.
Portugal era aquele sítio que dava vontade de morrer. Ou, então, dava vontade de matar.
Dito e feito: em 1908, o rei d. Carlos era assassinado a tiro.
Veio a República. E, com ela, veio um estado de violência revolucionária que durou até 1926, altura em que os militares acabaram com a festa e prepararam o caminho para Salazar.
O livro de Fernando Pessoa, “Lisboa - O que o Turista Deve Ver”, um inédito escrito em 1925 (em inglês), não pode ser entendido sem a História. Não pode ser entendido sem o forte sentido de “descategorização civilizacional” que não poderia deixar de entristecer um “patriota cosmopolita” como Pessoa. Será esse sentimento que o levará a exaltar Lisboa para consumo estrangeiro.
A Lisboa que o leitor tem nas páginas do livro é sempre excesso: os funcionários são “competentes”, “poliglotas”, “afáveis”; todos os edifícios são “belos”, ou “obras-primas”, ou exemplares “sem paralelo na Europa”.
Contornos
Confrontado com tais descrições, a primeira atitude é questionar se uma cidade assim tão perfeita existiu algum dia na Terra. Uma coisa é certa: para quem vive hoje em Lisboa, a cidade apresentada no livro ganha contornos fantasmagóricos. Sim, alguns elementos continuam no sítio: a belíssima Praça do Comércio continua a maravilhar os turistas e a albergar os serviços públicos; e, claro, os Jerónimos serão sempre os Jerónimos.
Mas, em contrapartida, onde está essa baixa pombalina que, em 1925, apresentava lojas “tão luxuosas como as suas congêneres européias”? Não está mais. E também não estão os hotéis do Rossio, que fugiram para a parte alta da cidade. Ou os cinemas da avenida da Liberdade, que hoje estão nos shoppings da periferia.
E se Pessoa, em 1925, se indignava com os lisboetas que não visitavam o frondoso Parque Eduardo VII, não sei o que diria ele hoje: “freqüentar o Parque Eduardo VII” é uma forma elegante para designar o negócio da prostituição na capital portuguesa.
Uma passagem, porém, despertou-me um sorriso irônico: ao passar pelo Chiado, em 1925, Pessoa prestava homenagem à estátua do poeta António do Espírito Santo. Quem diria que, em 2008, o poeta do Chiado seria outro. Neste caso, o próprio Fernando Pessoa, transformado em estátua e sentado à mesa de um café.
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LISBOA - O QUE O TURISTA DEVE VER
Autor: Fernando Pessoa
Tradução: Maria Aurélia Santos Gomes
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (192 págs.)
Avaliação: regular
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
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«Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto.
Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de me sentir coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.
Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as coisas - uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.»
(
Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)
*
(Alerto para algumas estranhezas deste texto, dado tratar-se de Português do Brasi):
[...]Também Fernando Pessoa, em o
Livro do Desassossego, joga com o fingimento a partir de dados autobiográficos. Na detecção desta realidade fingida, o leitor situa-se num território instável, perdido entre os apelos da realidade e os apelos do mundo ficcional. No capítulo intitulado: "Autobiografia sem fatos", o narrador desses fragmentos de desassossego, Bernardo Soares, já estabelece as regras do jogo:
Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nesta impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer ( Pessoa, 1986, 45).
As possibilidades de certeza sobre os fatos se entremostram e se desfazem, deixando um gosto amargo de frustração. O narrador compartilha uma cena de rua com um "passante", com quem já se deparara anteriormente em suas andanças pelas ruas de Lisboa. De uma frase casual trocada, nascem as apresentações:
A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista "Orpheu", que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em "Orpheu" sói ser para poucos ( Pessoa, 1986, 44 ).
Este dado histórico - referência a "Orpheu"- remete a Fernando Pessoa, mas não elucida o mistério sob as máscaras. Esclarece Leila Perrone-Moisés na "Introdução"9 de o
Livro do Desassossego:
A intromissão desse dado histórico nos remete a Fernando Pessoa: seria ele quem teria encontrado Bernardo Soares e, nesse caso, seria ele o narrador desse encontro? Ou teria sido Bernardo Soares que encontrara Fernando Pessoa e lhe falara de Orpheu ? Afinal, ambos correspondem ao mesmo retrato falado: empregado de escritório e escritor. Vertiginoso encontro especular em que o dado real (Orpheu) autentica os dois interlocutores como existentes, ao mesmo tempo que indetermina a autoria do Livro, desrealizando-o (Perrone-Moisés, 25-26 ).
A busca, nessas notas "autobiográficas", de um centro ordenador dos conhecidos heterônimos, que poderiam não passar de uma farsa, sob o controle de Fernando Pessoa, perde-se em dispersão e labirinto. A identidade do narrador espalha-se em personagens fictícias, em que Fernando Pessoa não mantém, como se poderia esperar, o controle de um grupo de marionetes. E diz Leila Perrone-Moisés:"O que é certo é que o teatro pessoano nada tem de um divertimento farsesco. Ele não foi uma invenção artística concebida com distanciamento; foi um modo de viver (de escrever) inevitável e horrível para aquele que sofria de uma irreparável falta de ser" (Perrone- Moisés, 1986, 27 ).
A referência a nomes de pessoas e nomes de ruas que comprovadamente existem ou existiram passam para o texto um cunho de realidade. No percurso pelas ruas concretas de Lisboa, o Poeta recupera a presença de Cesário Verde, com quem compartilha seu isolamento:
A Rua dos Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância, igual a dos versos que foram dele (Pessoa, 1986, 121).
O Livro do Desassossego, ancorado na realidade, é, todavia, uma autobiografia fingida ou um fingimento autobiográfico, onde mesmo que Bernardo Soares fosse considerado uma simples máscara literária de Fernando Pessoa, não se poderia considerar esse diário íntimo de um retrato fiel de Fernando Pessoa. Esta nova máscara complica mais ainda a procura de certezas de um sujeito lúcido e ordenador:
Não é por ser um empregado de comércio doublé de escritor, por ser solitário, triste e irônico que Bernardo Soares se parece tanto com Fernando Pessoa. Ele se parece tanto com Pessoa por ser a mais fluída, a mais inconsistente, a mais mutante, a menos "personalidade" das "personalidades" pessoanas (Perrone- Moisés, 1986, 27).
Memória e fingimento: os jogos de
Fernando Pessoa e Roberto Drummond no exercício da escritura *
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo, nítido, o sem sol do céu ocidental. Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto. Há uma grande paz que não tenho dispersa fria- mente no ar outonal abstracto. Sofro de não ter o prazer vago de supor que ela existe. Mas, na realidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que desmaiam – azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágoa, prolixo e indefinido.
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(Alerto para alguma estranheza relacionada com o facto de o texto estar grafado com a grafia original, logo, de acordo com a norma da época em que foi escrito)
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade baixa, e sobretudo aquele socego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenakl, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cães quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjuncto. Vivo uma era anterior aquela em que vivo; goso de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os d'ele, mas a substância igual à dos versos que foram d'ele.
Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a d'essas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha, ante o que é a essencia das cousas. Há um destino igual, porque é abstracto, para os homens e para as cousas - uma designação igualmente indiferente na algebra do mistério.
Mas há mais alguma cousa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma cousa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em cousas, não para me substituirem a realidade, mas pare se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que cousa, que se destaca, toda arabe, como um repuxo subito, da monotonia do entardecer!
Passam casaes futuros, passam os pares das costureiras, passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta reparam em pouco os vadios parados que são donas das lojas. Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonanbulizam em molhas ora muito ruidosos, [?] ora mais que ruidosos. Gente normal surge de vez em quando. Os automoveis ali a esta hora não são muito frequentes; [...] No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio ao meu sentir, [...] quando o acaso deita pedras, echos de vozes incógnitas - salada colectiva da vida.
O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões - a perda d'elas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perde-las, a mágoa de as ter tido, a vetonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligencia. Há inteligências inconscientes... brilhos do espírito, correntos do entendimento, vozes [...] e philosophias que tem o mesmo entendimento que os reflexos corporeos, que a gesão que o fígado e os rins fazem de suas secreções.
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Maria de Lourdes Abreu de Oliveira
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora - CES/JF
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Carta de Fernando pessoa ao seu amigo Mário Beirão:
"Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na agricultura, se costuma chamar "crise de abundância".
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura escuramente outras. V. dificilmente imaginará que a Rua do Arsenal, em matéria de movimento, tem sido a minha pobre cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei o que são, cartas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma - para a bruma - pela bruma...
Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar o seguinte fenômeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve trovoada, mas esteve iminente e começou a chover — aqueles pingos graves, quentes e espaçados — ia eu ainda a meio caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que V. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto[1] — acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa —, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é a coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade... "
Fernando Pessoa, 1 de Fevereiro de 1913
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Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem que razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros — os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. E o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretem-no mais que me entretem a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o facto é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espectáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de impossível?
A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma diferença de hoje para ontem — isto me fique sempre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai, passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado.
Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.
Livro do Desassossego*
Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma, mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado de alma. Objectivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicologia verbal? Independentemente de mim, cresce erva, chove na erva que cresce, e o sol doira a extensão da erva que cresceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Homero, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certa era dizer que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-somente a verdade de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande extensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de S. Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto, tenho um sorriso grandemente metafísico para os que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior absoluto com urna virtude nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno - vapor de carga preto - dos lados do Poço do Bispo para a barra que não vejo. Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.
Livro do Desassossego