Alguns trabalhos assumiram a forma de blogue, outros o formato de papel, bloco, caderno; outros ainda forma-me enviados por email. Isto significa que alguns destes bons trabalhos acabaram por não ser partilhados nem divulgados, o que é pena. Aqui está um exemplo de um que me chegou por email:
Um misto de balanço da matéria e do trabalho individual da aluna com uma ou outra reflexão que se pode relacionar com a visita de estudo pessoana, sob a forma de ficção.
O texto que se segue é Carolina do 12H, que usa o pseudónimo de Sahara e não gosta de fazer relatórios, pelo que encontrou esta forma inteligente de fazer, não o fazendo, o que lhe fora pedido que fizesse. :-)
Professora R
A arrastar os pés, Madalena percorreu as ruas por onde passeara com Mateus. Ainda tinha esperança de encontrá-lo algures, num sítio especial: na florista o "cantinho da Flor", onde ele trabalhara; na casa abandonada onde tinham acampado uma noite, na montanha onde costumavam ir para falar e pensar.
Desde que Mateus partira, que as ruas pareciam mais vazias e silenciosas. Ninguém falava do assunto, mas todos concordavam, silenciosamente, que o Nómada lhes fazia falta.
Com o livro que Mateus lhe deixara debaixo do braço, encaminhou-se para a colina. Sentou-se no muro de pedra, como fazia quando estava com o Nómada, e começou a ler.
Era um diário, com textos escritos pelo próprio Mateus, e algumas prosas e poemas copiados.
Madalena riu, ao recordar a obsessão de Mateus por Fernando Pessoa. Adorava-o; especialmente quando escrevia sob o nome de Alberto Caeiro: dizia que Alberto era realmente o mestre, porque não aprendera a sê-lo nem se esforçava para o ser, era-o e pronto.
A rapariga torceu o nariz: agora que pensava no assunto, Caeiro e Mateus eram muito parecidos... Tanto o Mestre como o Nómada viviam em paz consigo mesmos e com o mundo, porque eram livres de tudo: do passado, do futuro, dos outros e deles mesmos. Memórias não as tinham, espectativas também não, nem dos outros, nem deles mesmos.
Ao sentir que o rosto se lhe contorcia ameaçando choro, Madalena inspirou fundo e tentou controlar-se: quem lhe dera poder ser como o Mateus, sem passado também.
Recordou então aquela vez em que Mateus lhe dissera que ela era muito parecida com Álvaro de Campos, se bem que, ao esforçar-se por ser como Caeiro, passasse por vezes por Reis.
Na altura, Madalena torcera o nariz e decidira que Mateus era completamente doido, mas agora percebia que, de facto, ela se entregava demasiado ao sentimento e que, ao ver a paz em que Mateus vivia, saboreando moderadamente cada sensação, tentara ser como ele, dominando-se um pouco como fazia Reis.
Então, entre duas páginas do diário, Madalena encontrou uma fotografia de um café, que reconheceu como "A Brazileira". Na fotografia, Madeus estava sentado ao lado da estátua do poeta, usava um par de óculos partidos e um chapéu de côco. Na mesa estava pousado um bloco de notas, e o Nómada brindava alegremente a Fernando Pessoa com uma garrafa de absinto. No verso da fotografia, estava escrito: "Eu e o meu amigo Pessoa, em Flagrante delitro. Ai se a Ofélia e a Madalena sabem..."
Então a rapariga riu a bom rir, e começou a ler o texto que Mateus escrevera sobre a Lisboa Pessoana. De nada Mateus se esquecera: da rua, dos prédios, dos cafés e do Animatógrafo (Mateus comentara vezes sem conta que lhe custava acreditar que Pessoa frequentasse aquele lugar, mesmo sabendo que antes não fora o que é agora).
Os outros textos que Madalena encontrou no diário falavam de coisas estranhas: sendo que um diário serve normalmente para narrar o quotidiano das gentes, não fazia o menor sentido que Mateus escrevesse cartas a Pessoa e aos respectivos heterónimos, nem que reflectisse sobre a importância das pessoas, e a relevância que podiam ter entre elas...
Madalena encontrou também alguns textos pagãos, tão adorados por Mateus; porque estabeleciam uma ligação entre o homem e a natureza, e porque, através de outras religiões, ridicularizavam o cristianismo.
Havia também relatos de sonhos, ou melhor, pesadelos.
Quando acabou de ler, Madalena encolheu-se sobre o muro e, de queixo pousado nos joelhos, pensou em tudo o que aprendera com Mateus. Em todas as coisas que eram tão óbvias e indespensáveis, e de que, até à sua chegada, ela não se apercebera.
Era importante pensar em quem eles eram, e em quem queriam ser. Saber porquê e como fazer uma diferença, tornando especiais os lugares por onde passamos e as Pessoas com que vivemos. Descobrir que, pelas coisas que ainda não fizemos mas havemos de fazer, tudo isto já é especial.
Apercebeu-se de como era importante redescobrir as nossas ligações à natureza e as animais: o Homem já não se lembra, mas é tão bicho quanto o seu cão, gato, ou como a formiga que pisa; começou como todos eles e como todos eles há-de acabar, sem nunca, por toda a vida, se aperceber de que a sua alma vale tanto como a deles, e tanto os corpos de uns como doutros têm as mesmas limitações; no fim o mesmo fado, no início o mesmo berço.
Pensou se as Pessoas são realmente quem querem ser, se o conseguem ser. Reflectiu nas suas semelhanças com os heterónimos, e, percorrendo com a mente a história de cada um, procurou alguma lição que estes lhe pudessem ensinar.
Depois, com a cabeça a latejar e os olhos quentes de lágrimas, levantou-se do muro e saiu da colina. Atravessou a aldeia, e chegou à estrada principal. Lá, avistou o Padre, sentado no banco da paragem de autocarro. Sentou-se ao pé dele, e entreolharam-se.
Então, de repente, ouviu-se o som de pneus a derraparem, e subiu no ar o cheiro de borracha queimada. Levantarm-se os dois, expectantes, a ver se era Mateus quem chegava no Land Rover que parava no meio da rua. Os feirantes inclinaram-se para cima das bancas para espreitar, e as pessoas que estavam nos cafés inclinaram-se e retorceram-se nas cadeiras para verem.
Mas, inexplicávelmente, o jipe continuou a sua marcha; do Nómada, nem sinal.
(O resumo do meu trabalho é feito ao mesmo tempo que Madalena lê o diário de Mateus, e a minha reflexão é feita aquando da reflexão dela.)
Sahara
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